SOCIEDADE DE SÃO VICENTE DE PAULO
4.1. Sociedade de São Vicente de Paulo: uma intuição profética
“A questão que divide os homens de hoje não é mais uma questão de moldes políticos, é uma questão social; é saber quem leva vantagem: o espírito de egoísmo ou o espírito de sacrifício; se a sociedade é uma grande exploração em proveito dos mais fortes ou é um somatório de esforços de cada um para o bem de todos e, sobretudo, para a proteção dos fracos. Há muitos homens que possuem muitos bens e querem ter mais ainda, há muito maior número de outros que não têm bastante, que nada possuem e querem tirar dos outros, se nada lhes derem. Entre estas duas classes de homens, uma luta se prepara, e esta luta ameaça ser terrível: de um lado, o poder do ouro; do outro, o poder do desespero. Entre estes dois exércitos inimigos, é preciso que nos coloquemos intermediários como meio deles a fim de impedir ou, pelos menos, de amortecer o choque. E nossa idade de jovens, nossa condição nos torna mais fácil este papel de mediadores que nosso título de cristão nos torna obrigatório. Eis a possível utilidade de nossa Sociedade de São Vicente de Paulo”.
Se não se chegou até o fim desta citação, poder-se-ia perguntar que pensador contemporâneo é seu autor. Ela procede, na realidade, do coração generoso e da inteligência intuitiva de um jovem, Antônio Frederico Ozanam, que, desde 1836, teve esta visão profética, vaticinando os grandes conflitos sociais e, transpondo a escala planetária, as tensões entre o terceiro mundo e o mundo industrializado.
4.2. Do sonho de Antônio Frederico Ozanam à realidade
Pressentindo que as relações humanas arriscam-se, cada vez mais, a se concentrar em relações de força, ele tinha sonhado, romanticamente, “que todos os jovens se unissem, de coração e espírito, a alguma obra caritativa...”.
Em 23 de abril de 1833 , o sonho tornava-se realidade com a reunião da primeira “Conferência da Caridade”, colocada sob o patrocínio de São Vicente de Paulo e que agrupava, ao redor de Emmanuel Bailly, mais cinco estudantes .
4.3. Sociedade de São Vicente de Paulo: expectativa de um progresso contínuo
A Sociedade de São Vicente de Paulo, de que Antônio Frederico Ozanam gostava de relembrar os “humildes começos”, devia conhecer um fulgurante impulso na França, na Europa e no mundo. Em 1860, já contava com duas mil e quinhentas Conferências e reunia mais de cinqüenta mil membros.
Após um período particularmente difícil, durante o Segundo Império , que via na Sociedade de São Vicente de Paulo uma associação que escapava, às vezes, à autoridade, a marcha para a frente recomeça irresistivelmente no dia seguinte ao conflito franco-prussiano, em 1870.
Foi, deste modo, que, às vésperas da primeira guerra mundial, o número das Conferências se elevava a oito mil e os membros, a cento e trinta e três mil.
Em 1933, ano do centenário, doze mil Conferências agrupavam mais de duzentos mil membros, enquanto que, em 1983, cento e cinqüenta anos depois da fundação, o número de Vicentinos atingia setecentos e cinqüenta mil, o das Conferências, trinta e oito mil e quinhentas e o dos países de implantação, cento e sete.
Em 1995, o recenseamento aponta oitocentos e setenta e cinco mil membros, distribuídos em quarenta e seis mil e seiscentas Conferências em cento e trinta países dos cinco continentes.
Os grupos, em sua maioria mistos, compostos de homens e mulheres, rapazes e moças, adolescentes e crianças, funcionam no plano das paróquias urbanas e rurais, dos bairros, dos grandes conjuntos, dos estabelecimentos escolares ou universitários, de associações profissionais ou culturais.
4.4. Sociedade de São Vicente de Paulo: uma fraternidade universal
Deixemos para outro momento a história e os algarismos para abordar o essencial, isto é, o espírito, os objetivos e os métodos da Sociedade de São Vicente de Paulo.
A Sociedade de São Vicente de Paulo, uma das mais antigas obras caritativas, sociais e humanitárias, apresenta-se hoje, como um vasto movimento internacional de apostolado caritativo e de ação social: graças à comunhão espiritual e à formação humana de seus membros, quer dar testemunho do amor fraterno do Cristo junto aos mais pobres. Procura com eles e com os outros, ajudar os Pobres a vencer a miséria sob suas múltiplas formas.
Dirige-se, em todas as nações do mundo, aos homens, às mulheres, aos jovens, de todos os meios e de todas as condições, que queiram encarnar sua fé no dom de si, comunicando, ao redor deles, sua esperança e sua alegria.
Desde as origens, a aspiração ao universal foi afirmada, de acordo com o voto entusiasta de Antônio Frederico Ozanam: “Queria reunir o mundo inteiro em uma rede de caridade”. Decidindo, a 17 de fevereiro de 1835, no fim de uma acalorada discussão, às vezes muito viva, que se havia estendido durante várias semanas, que a Conferência inicial se fracionaria em diversas secções, os membros da Sociedade nascente manifestaram sua vontade de ver seu movimento emigrar fora dos limites de sua paróquia, de sua cidade, de seu país, até mesmo de seu continente, para se implantar em todos os cantos do mundo.
A exemplo da própria Igreja, a riqueza desta dinâmica associação de cristãos fervorosos devia residir, no futuro, em sua diversidade. Sua unidade devia se forjar no pluralismo e na diferença.
4.5. Uma busca espiritual
Se Antônio Frederico Ozanam e seus companheiros tiveram preocupações humanas e sociais notáveis, ao estabelecer a sociedade de São Vicente de Paulo, se sua preocupação permanente foi a de remediar as durezas de seu tempo, não sentiram menos a urgência e a necessidade de uma formação espiritual sólida como fundamento insubstituível de sua vocação e de sua missão.
O harmonioso equilíbrio entre oração e ação, que São Vicente de Paulo realiza tão perfeitamente, foi por eles percebido como a constante do compromisso vicentino. Este extrai de uma vida de fé sua inspiração, seu vigor, sua fidelidade.
Alguns da Sociedade, aprofundando sua conduta espiritual, chegam a doar-se a si mesmos em uma vocação religiosa, diaconal ou sacerdotal. Cada ano, mulheres e homens jovens das Conferências fazem esta opção radical a serviço da Igreja.
4.6. Um compromisso pela justiça social
“Não há caridade que não seja acompanhada de justiça”, proclamava São Vicente de Paulo em meio do “Grande Século”, o século XVII, cujo mérito não dissimulava nem a seus olhos nem a seu coração as durezas de seu tempo.
Na mesma linha de pensamento, Antônio Frederico Ozanam, que desejava “que a caridade faça o que a justiça sozinha não poderia fazer”, sublinhava as insuficiências desta, cujo caráter impessoal necessita ser completado e humanizado pela gratuidade e pela delicadeza da benevolência: “a ordem da sociedade repousa sobre duas virtudes: justiça e caridade”.
Mas a justiça requer muito amor; pois é preciso amar muito à pessoa humana, respeitar seu direito que limita nosso direito e sua liberdade que tolhe nossa liberdade! Entretanto, a justiça tem seus limites; a caridade não os conhece.
Foi esta exigência que inspirou, nos anos 1930, a Emílio Romanet, membro de uma Conferência de Grenoble, a idéia revolucionária dos abonos familiares.
Fiel à sua vocação vicentina, tal como foi definida, acima, por Antônio Frederico Ozanam, ele havia compreendido que não havia caridade digna deste nome, sem uma autêntica diligência para uma maior eqüidade.
Foi o que nos lembrou o Concílio Vaticano II quando afirmou: “Satisfaçam-se, em primeiro lugar, as exigências da justiça, para que não se dê como caridade o que já é devido a título de justiça” .
Além disso, a Sociedade de São Vicente de Paulo participa, dentro de suas possibilidades e de seus recursos humanos e materiais e em estreita colaboração com os poderes públicos ou com as comunidades locais, do esforço comum para remediar as causas desses males sociais e desenvolver o plano institucional.
4.7. Sociedade de São Vicente de Paulo: um encontro pessoal com aqueles que sofrem
Muito embora esta luta pela justiça social pareça fundamental ao Vicentino, não encontra ele a plenitude de sua vocação senão no serviço pessoal, direto e permanente aos mais despojados, a exemplo de São Vicente de Paulo, que os membros da Conferência escolheram por Santo Patrono, esforçando-se por “realizar, como ele mesmo realizou, o tipo divino de Jesus Cristo”.
Irmã Rosalie Rendu , Filha da Caridade, que já se tornara célebre por uma ação tão eficaz como atenciosa, junto aos doentes do bairro de Mouffetard, em Paris, compreendeu o generoso e ardente ideal de Antônio Frederico Ozanam e de seus amigos.
Foi ela que, guiada pela inteligência do coração, os conduziu pelos caminhos da Caridade até aos deserdados, entre os quais eles fizeram a experiência do verdadeiro amor aos Pobres.
Paulo VI que tinha sido membro da Sociedade de São Vicente de Paulo, quando estudante, qualificava os Vicentinos de “amigos e servidores dos Pobres”.
4.8. Sociedade de São Vicente de Paulo: múltiplas atividades em constante adaptação
É nesta perspectiva que está orientada toda a ação da Sociedade de São Vicente de Paulo junto àqueles que o mundo fere, rejeita, isola, marginaliza:
a) Obras em favor da infância e da juventude;
b) Alfabetização, formação profissional técnica e agrícola, bolsas de estudos;
c) Iniciativas em favor das vítimas do desemprego e de suas famílias;
d) Criações e procuras de empregos para os Pobres;
e) Apoio moral e material aos isolados, às famílias em dificuldades;
f) Iniciativas em favor das mães solteiras e das mulheres abandonadas;
g) Atividades em favor da terceira idade: visitas em domicilio, ajuda econômica, clubes, casas de retiros;
h) Ação sanitária: visita aos doentes, aos deficientes físicos e mentais, cegos; tratamentos em domicílio; criação de hospitais, de dispensários, de centros médicos;
i) Assistência aos dependentes do álcool, das drogas, e às pessoas atingidas de doenças graves;
j) Visita às prisões, assistência pós-penal;
l) Reintegração social dos marginalizados;
m) Criação de projetos artesanais;
n) Ajuda aos andarilhos;
o) Acolhimento, orientação, ajuda e alfabetização dos migrantes, em harmonia com sua identidade, sua cultura e suas tradições;
p) Programas de habitação e de melhoramento da habitação;
q) Ajuda alimentar;
r) Projetos de desenvolvimento, sobretudo nos setores da agricultura, da criação de animais e da pesca;
s) Animação de mais de cinco mil parcerias entre equipes de países ricos e de países pobres;
t) Socorro aos refugiados, aos sem-pátria;
u) Campanhas de solidariedade;
v) Animação cultural, bibliotecas, áreas de lazer, gincanas;
x) Consultas jurídicas, administrativas e sociais;
z) Participação nas mais variadas pastorais das comunidades paroquiais.
O denominador comum de todas estas atividades e realizações é a preocupação de levar aos mais desorientados e aos mais deserdados a escuta, a amizade, o apoio espiritual, moral e material para os restabelecer em sua dignidade, lhes assegurar a promoção de sua pessoa, restituir sua dignidade, restituir-lhes a esperança e, se possível, a alegria de viver.
4.9. Sociedade de São Vicente de Paulo: uma associação de natureza eclesial com caráter leigo
Esta é uma das originalidades da Sociedade de São Vicente de Paulo. Com efeito, a inovação, audaciosa, na época de Antônio Frederico Ozanam e de seus companheiros, é, sem dúvida, a de ter desejado que os destinos de sua querida sociedade, de natureza eclesial, profundamente fiel à autoridade religiosa, fossem assegurados por leigos que se sentissem plenamente maiores e responsáveis. Cento e trinta anos antes do Concílio Vaticano II , estes jovens haviam pressentido a importância, senão a necessidade de um apostolado dos leigos, dinâmico e criativo, no seio do povo de Deus.
Oficialmente reconhecida no plano eclesial pelos Breves de 10 de janeiro e de 12 de agosto de 1845, de Gregório XVI, e confirmada pelos Papas que lhe sucederam, a Sociedade de São Vicente de Paulo sempre preservou, fielmente, seu caráter leigo, constante essencial de sua especificidade.
4.10. Sociedade de São Vicente de Paulo: a serviço da Igreja e da Caridade
Nascida no coração da Igreja, a Sociedade de São Vicente de Paulo está a serviço da caridade. Inspirada pela mensagem evangélica, atenta aos ensinamentos do Magistério, ela age, no seio da comunidade humana com a qual deve cooperar para fornecer um “melhor ser”, além de um “ser mais”.
A fé sem as obras não será uma fé morta? . É o que nos lembram, muito a propósito, os Padres conciliares, quando exortam “os cristãos, cidadãos de uma e outra cidade, a procurarem desempenhar fielmente suas tarefas terrestres, guiados pelo espírito do Evangelho. Afastam-se da verdade os que, sabendo que não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a futura, julgam, por conseguinte, poderem negligenciar os seus deveres terrestres, sem perceberem que estão mais obrigados a cumpri-los, por causa da própria fé, de acordo com a vocação à qual cada um foi chamado.
Não erram menos aqueles que pensam que podem entregar-se de tal maneira às atividades terrestres, como se elas fossem absolutamente alheias à vida religiosa, julgando que esta consiste somente nos atos de culto e no cumprimento de alguns deveres morais. Este divórcio entre a fé professada e a vida cotidiana de muitos, deve ser enumerado entre os erros mais graves do nosso tempo” .
Se a Igreja espera de nós um autêntico testemunho de fé e de espiritualidade, ela nos convida, igualmente, a estar plenamente presentes nesse mundo em profunda mutação, que sofre, luta e se busca.
A vocação da Sociedade de São Vicente de Paulo leva cada um de seus membros a inserir-se no contexto humano onde se travam os combates por um mundo melhor e mais justo. É o que motiva grande número dentre eles a se comprometer. Como o fez, pessoalmente, Antônio Frederico Ozanam, pela defesa da causa dos Pobres.
Um dos exemplos mais notáveis foi o de Giorgio La Pira, professor, idealizador da Democracia Cristã, na Itália, antigo Prefeito de Florença, que combateu, apaixonadamente, em favor dos humildes.
Conscientes dos múltiplos problemas, oriundos das diversas formas da pobreza espiritual, moral, cultural, física e material, os Vicentinos se dedicam, com lucidez, a restituir as esperanças àqueles que as perderam, levando a uma humanidade que se interroga e investiga este “suplemento da alma” que evocava o grande filósofo e espiritualista francês, Henri Bergson.
Graças a uma administração flexível, pouco dispendiosa, reduzida ao essencial, constituída, sobretudo de auxílios, meios humanos, técnicos e materiais, os vicentinos podem ser, rapidamente mobilizados, aproveitados e adaptados às circunstâncias de tempo e de lugar.
Além disso, o fato de existir como uma entidade local, na maior parte dos países do mundo, permite, igualmente, uma gestão tão racional, econômica e rigorosa quanto possível, em função do contexto local.
Esta organização e estes métodos fizeram suas demonstrações no centro dos dramas humanos e das catástrofes naturais que afligem, periodicamente, nosso mundo.
4.11. A vocação vicentina: um esforço de unidade de vida
Assim, a vocação vicentina dá, neste século XXI, de ciência, de tecnologia e de eficácia um humilde, mas autêntico testemunho de caridade fraterna e de abertura social.
Convida seus membros ao serviço, à partilha e ao dom total de si: ter, ser e saber, a fim de melhor responder ao apelo angustiado de tantos homens e mulheres deste tempo, abandonados por causa de um progresso que não beneficia os mais fracos.
Verdadeira escola social, em particular para os mais jovens, torna sensível, a partir do contato pessoal com os mais pobres, aos problemas mais vastos de nosso tempo. O gesto do amor individual, longe de encobrir a realidade, abre o coração e o espírito às dimensões mundiais do sofrimento, às exigências da justiça a aos imperativos da dignidade humana.
A vocação vicentina não é uma incrustação artificial. Plenamente assumida, ela conduz a uma unidade de vida fundamental, pondo em acordo pensamento, palavras e atos.
A harmonia entre fé e as obras ao serviço do próximo, tal é o ideal pacientemente perseguido, apesar de suas fraquezas ou de suas insuficiências, pelos herdeiros espirituais de São Vicente de Paulo e de Antônio Frederico Ozanam.
Longe das luzes da ribalta e dos artifícios mediáticos, mas resolutamente voltada para o futuro, a Sociedade de São Vicente de Paulo, guarda, no mais profundo de si mesma, este pensamento de seu fundador:
“A caridade jamais deve olhar para trás, mas continuamente para a frente, porque o número de seus benefícios passados é sempre muito pequeno e as misérias presentes e futuras, que deve aliviar, são infinitas”.
4.1. Sociedade de São Vicente de Paulo: uma intuição profética
“A questão que divide os homens de hoje não é mais uma questão de moldes políticos, é uma questão social; é saber quem leva vantagem: o espírito de egoísmo ou o espírito de sacrifício; se a sociedade é uma grande exploração em proveito dos mais fortes ou é um somatório de esforços de cada um para o bem de todos e, sobretudo, para a proteção dos fracos. Há muitos homens que possuem muitos bens e querem ter mais ainda, há muito maior número de outros que não têm bastante, que nada possuem e querem tirar dos outros, se nada lhes derem. Entre estas duas classes de homens, uma luta se prepara, e esta luta ameaça ser terrível: de um lado, o poder do ouro; do outro, o poder do desespero. Entre estes dois exércitos inimigos, é preciso que nos coloquemos intermediários como meio deles a fim de impedir ou, pelos menos, de amortecer o choque. E nossa idade de jovens, nossa condição nos torna mais fácil este papel de mediadores que nosso título de cristão nos torna obrigatório. Eis a possível utilidade de nossa Sociedade de São Vicente de Paulo”.
Se não se chegou até o fim desta citação, poder-se-ia perguntar que pensador contemporâneo é seu autor. Ela procede, na realidade, do coração generoso e da inteligência intuitiva de um jovem, Antônio Frederico Ozanam, que, desde 1836, teve esta visão profética, vaticinando os grandes conflitos sociais e, transpondo a escala planetária, as tensões entre o terceiro mundo e o mundo industrializado.
4.2. Do sonho de Antônio Frederico Ozanam à realidade
Pressentindo que as relações humanas arriscam-se, cada vez mais, a se concentrar em relações de força, ele tinha sonhado, romanticamente, “que todos os jovens se unissem, de coração e espírito, a alguma obra caritativa...”.
Em 23 de abril de 1833 , o sonho tornava-se realidade com a reunião da primeira “Conferência da Caridade”, colocada sob o patrocínio de São Vicente de Paulo e que agrupava, ao redor de Emmanuel Bailly, mais cinco estudantes .
4.3. Sociedade de São Vicente de Paulo: expectativa de um progresso contínuo
A Sociedade de São Vicente de Paulo, de que Antônio Frederico Ozanam gostava de relembrar os “humildes começos”, devia conhecer um fulgurante impulso na França, na Europa e no mundo. Em 1860, já contava com duas mil e quinhentas Conferências e reunia mais de cinqüenta mil membros.
Após um período particularmente difícil, durante o Segundo Império , que via na Sociedade de São Vicente de Paulo uma associação que escapava, às vezes, à autoridade, a marcha para a frente recomeça irresistivelmente no dia seguinte ao conflito franco-prussiano, em 1870.
Foi, deste modo, que, às vésperas da primeira guerra mundial, o número das Conferências se elevava a oito mil e os membros, a cento e trinta e três mil.
Em 1933, ano do centenário, doze mil Conferências agrupavam mais de duzentos mil membros, enquanto que, em 1983, cento e cinqüenta anos depois da fundação, o número de Vicentinos atingia setecentos e cinqüenta mil, o das Conferências, trinta e oito mil e quinhentas e o dos países de implantação, cento e sete.
Em 1995, o recenseamento aponta oitocentos e setenta e cinco mil membros, distribuídos em quarenta e seis mil e seiscentas Conferências em cento e trinta países dos cinco continentes.
Os grupos, em sua maioria mistos, compostos de homens e mulheres, rapazes e moças, adolescentes e crianças, funcionam no plano das paróquias urbanas e rurais, dos bairros, dos grandes conjuntos, dos estabelecimentos escolares ou universitários, de associações profissionais ou culturais.
4.4. Sociedade de São Vicente de Paulo: uma fraternidade universal
Deixemos para outro momento a história e os algarismos para abordar o essencial, isto é, o espírito, os objetivos e os métodos da Sociedade de São Vicente de Paulo.
A Sociedade de São Vicente de Paulo, uma das mais antigas obras caritativas, sociais e humanitárias, apresenta-se hoje, como um vasto movimento internacional de apostolado caritativo e de ação social: graças à comunhão espiritual e à formação humana de seus membros, quer dar testemunho do amor fraterno do Cristo junto aos mais pobres. Procura com eles e com os outros, ajudar os Pobres a vencer a miséria sob suas múltiplas formas.
Dirige-se, em todas as nações do mundo, aos homens, às mulheres, aos jovens, de todos os meios e de todas as condições, que queiram encarnar sua fé no dom de si, comunicando, ao redor deles, sua esperança e sua alegria.
Desde as origens, a aspiração ao universal foi afirmada, de acordo com o voto entusiasta de Antônio Frederico Ozanam: “Queria reunir o mundo inteiro em uma rede de caridade”. Decidindo, a 17 de fevereiro de 1835, no fim de uma acalorada discussão, às vezes muito viva, que se havia estendido durante várias semanas, que a Conferência inicial se fracionaria em diversas secções, os membros da Sociedade nascente manifestaram sua vontade de ver seu movimento emigrar fora dos limites de sua paróquia, de sua cidade, de seu país, até mesmo de seu continente, para se implantar em todos os cantos do mundo.
A exemplo da própria Igreja, a riqueza desta dinâmica associação de cristãos fervorosos devia residir, no futuro, em sua diversidade. Sua unidade devia se forjar no pluralismo e na diferença.
4.5. Uma busca espiritual
Se Antônio Frederico Ozanam e seus companheiros tiveram preocupações humanas e sociais notáveis, ao estabelecer a sociedade de São Vicente de Paulo, se sua preocupação permanente foi a de remediar as durezas de seu tempo, não sentiram menos a urgência e a necessidade de uma formação espiritual sólida como fundamento insubstituível de sua vocação e de sua missão.
O harmonioso equilíbrio entre oração e ação, que São Vicente de Paulo realiza tão perfeitamente, foi por eles percebido como a constante do compromisso vicentino. Este extrai de uma vida de fé sua inspiração, seu vigor, sua fidelidade.
Alguns da Sociedade, aprofundando sua conduta espiritual, chegam a doar-se a si mesmos em uma vocação religiosa, diaconal ou sacerdotal. Cada ano, mulheres e homens jovens das Conferências fazem esta opção radical a serviço da Igreja.
4.6. Um compromisso pela justiça social
“Não há caridade que não seja acompanhada de justiça”, proclamava São Vicente de Paulo em meio do “Grande Século”, o século XVII, cujo mérito não dissimulava nem a seus olhos nem a seu coração as durezas de seu tempo.
Na mesma linha de pensamento, Antônio Frederico Ozanam, que desejava “que a caridade faça o que a justiça sozinha não poderia fazer”, sublinhava as insuficiências desta, cujo caráter impessoal necessita ser completado e humanizado pela gratuidade e pela delicadeza da benevolência: “a ordem da sociedade repousa sobre duas virtudes: justiça e caridade”.
Mas a justiça requer muito amor; pois é preciso amar muito à pessoa humana, respeitar seu direito que limita nosso direito e sua liberdade que tolhe nossa liberdade! Entretanto, a justiça tem seus limites; a caridade não os conhece.
Foi esta exigência que inspirou, nos anos 1930, a Emílio Romanet, membro de uma Conferência de Grenoble, a idéia revolucionária dos abonos familiares.
Fiel à sua vocação vicentina, tal como foi definida, acima, por Antônio Frederico Ozanam, ele havia compreendido que não havia caridade digna deste nome, sem uma autêntica diligência para uma maior eqüidade.
Foi o que nos lembrou o Concílio Vaticano II quando afirmou: “Satisfaçam-se, em primeiro lugar, as exigências da justiça, para que não se dê como caridade o que já é devido a título de justiça” .
Além disso, a Sociedade de São Vicente de Paulo participa, dentro de suas possibilidades e de seus recursos humanos e materiais e em estreita colaboração com os poderes públicos ou com as comunidades locais, do esforço comum para remediar as causas desses males sociais e desenvolver o plano institucional.
4.7. Sociedade de São Vicente de Paulo: um encontro pessoal com aqueles que sofrem
Muito embora esta luta pela justiça social pareça fundamental ao Vicentino, não encontra ele a plenitude de sua vocação senão no serviço pessoal, direto e permanente aos mais despojados, a exemplo de São Vicente de Paulo, que os membros da Conferência escolheram por Santo Patrono, esforçando-se por “realizar, como ele mesmo realizou, o tipo divino de Jesus Cristo”.
Irmã Rosalie Rendu , Filha da Caridade, que já se tornara célebre por uma ação tão eficaz como atenciosa, junto aos doentes do bairro de Mouffetard, em Paris, compreendeu o generoso e ardente ideal de Antônio Frederico Ozanam e de seus amigos.
Foi ela que, guiada pela inteligência do coração, os conduziu pelos caminhos da Caridade até aos deserdados, entre os quais eles fizeram a experiência do verdadeiro amor aos Pobres.
Paulo VI que tinha sido membro da Sociedade de São Vicente de Paulo, quando estudante, qualificava os Vicentinos de “amigos e servidores dos Pobres”.
4.8. Sociedade de São Vicente de Paulo: múltiplas atividades em constante adaptação
É nesta perspectiva que está orientada toda a ação da Sociedade de São Vicente de Paulo junto àqueles que o mundo fere, rejeita, isola, marginaliza:
a) Obras em favor da infância e da juventude;
b) Alfabetização, formação profissional técnica e agrícola, bolsas de estudos;
c) Iniciativas em favor das vítimas do desemprego e de suas famílias;
d) Criações e procuras de empregos para os Pobres;
e) Apoio moral e material aos isolados, às famílias em dificuldades;
f) Iniciativas em favor das mães solteiras e das mulheres abandonadas;
g) Atividades em favor da terceira idade: visitas em domicilio, ajuda econômica, clubes, casas de retiros;
h) Ação sanitária: visita aos doentes, aos deficientes físicos e mentais, cegos; tratamentos em domicílio; criação de hospitais, de dispensários, de centros médicos;
i) Assistência aos dependentes do álcool, das drogas, e às pessoas atingidas de doenças graves;
j) Visita às prisões, assistência pós-penal;
l) Reintegração social dos marginalizados;
m) Criação de projetos artesanais;
n) Ajuda aos andarilhos;
o) Acolhimento, orientação, ajuda e alfabetização dos migrantes, em harmonia com sua identidade, sua cultura e suas tradições;
p) Programas de habitação e de melhoramento da habitação;
q) Ajuda alimentar;
r) Projetos de desenvolvimento, sobretudo nos setores da agricultura, da criação de animais e da pesca;
s) Animação de mais de cinco mil parcerias entre equipes de países ricos e de países pobres;
t) Socorro aos refugiados, aos sem-pátria;
u) Campanhas de solidariedade;
v) Animação cultural, bibliotecas, áreas de lazer, gincanas;
x) Consultas jurídicas, administrativas e sociais;
z) Participação nas mais variadas pastorais das comunidades paroquiais.
O denominador comum de todas estas atividades e realizações é a preocupação de levar aos mais desorientados e aos mais deserdados a escuta, a amizade, o apoio espiritual, moral e material para os restabelecer em sua dignidade, lhes assegurar a promoção de sua pessoa, restituir sua dignidade, restituir-lhes a esperança e, se possível, a alegria de viver.
4.9. Sociedade de São Vicente de Paulo: uma associação de natureza eclesial com caráter leigo
Esta é uma das originalidades da Sociedade de São Vicente de Paulo. Com efeito, a inovação, audaciosa, na época de Antônio Frederico Ozanam e de seus companheiros, é, sem dúvida, a de ter desejado que os destinos de sua querida sociedade, de natureza eclesial, profundamente fiel à autoridade religiosa, fossem assegurados por leigos que se sentissem plenamente maiores e responsáveis. Cento e trinta anos antes do Concílio Vaticano II , estes jovens haviam pressentido a importância, senão a necessidade de um apostolado dos leigos, dinâmico e criativo, no seio do povo de Deus.
Oficialmente reconhecida no plano eclesial pelos Breves de 10 de janeiro e de 12 de agosto de 1845, de Gregório XVI, e confirmada pelos Papas que lhe sucederam, a Sociedade de São Vicente de Paulo sempre preservou, fielmente, seu caráter leigo, constante essencial de sua especificidade.
4.10. Sociedade de São Vicente de Paulo: a serviço da Igreja e da Caridade
Nascida no coração da Igreja, a Sociedade de São Vicente de Paulo está a serviço da caridade. Inspirada pela mensagem evangélica, atenta aos ensinamentos do Magistério, ela age, no seio da comunidade humana com a qual deve cooperar para fornecer um “melhor ser”, além de um “ser mais”.
A fé sem as obras não será uma fé morta? . É o que nos lembram, muito a propósito, os Padres conciliares, quando exortam “os cristãos, cidadãos de uma e outra cidade, a procurarem desempenhar fielmente suas tarefas terrestres, guiados pelo espírito do Evangelho. Afastam-se da verdade os que, sabendo que não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a futura, julgam, por conseguinte, poderem negligenciar os seus deveres terrestres, sem perceberem que estão mais obrigados a cumpri-los, por causa da própria fé, de acordo com a vocação à qual cada um foi chamado.
Não erram menos aqueles que pensam que podem entregar-se de tal maneira às atividades terrestres, como se elas fossem absolutamente alheias à vida religiosa, julgando que esta consiste somente nos atos de culto e no cumprimento de alguns deveres morais. Este divórcio entre a fé professada e a vida cotidiana de muitos, deve ser enumerado entre os erros mais graves do nosso tempo” .
Se a Igreja espera de nós um autêntico testemunho de fé e de espiritualidade, ela nos convida, igualmente, a estar plenamente presentes nesse mundo em profunda mutação, que sofre, luta e se busca.
A vocação da Sociedade de São Vicente de Paulo leva cada um de seus membros a inserir-se no contexto humano onde se travam os combates por um mundo melhor e mais justo. É o que motiva grande número dentre eles a se comprometer. Como o fez, pessoalmente, Antônio Frederico Ozanam, pela defesa da causa dos Pobres.
Um dos exemplos mais notáveis foi o de Giorgio La Pira, professor, idealizador da Democracia Cristã, na Itália, antigo Prefeito de Florença, que combateu, apaixonadamente, em favor dos humildes.
Conscientes dos múltiplos problemas, oriundos das diversas formas da pobreza espiritual, moral, cultural, física e material, os Vicentinos se dedicam, com lucidez, a restituir as esperanças àqueles que as perderam, levando a uma humanidade que se interroga e investiga este “suplemento da alma” que evocava o grande filósofo e espiritualista francês, Henri Bergson.
Graças a uma administração flexível, pouco dispendiosa, reduzida ao essencial, constituída, sobretudo de auxílios, meios humanos, técnicos e materiais, os vicentinos podem ser, rapidamente mobilizados, aproveitados e adaptados às circunstâncias de tempo e de lugar.
Além disso, o fato de existir como uma entidade local, na maior parte dos países do mundo, permite, igualmente, uma gestão tão racional, econômica e rigorosa quanto possível, em função do contexto local.
Esta organização e estes métodos fizeram suas demonstrações no centro dos dramas humanos e das catástrofes naturais que afligem, periodicamente, nosso mundo.
4.11. A vocação vicentina: um esforço de unidade de vida
Assim, a vocação vicentina dá, neste século XXI, de ciência, de tecnologia e de eficácia um humilde, mas autêntico testemunho de caridade fraterna e de abertura social.
Convida seus membros ao serviço, à partilha e ao dom total de si: ter, ser e saber, a fim de melhor responder ao apelo angustiado de tantos homens e mulheres deste tempo, abandonados por causa de um progresso que não beneficia os mais fracos.
Verdadeira escola social, em particular para os mais jovens, torna sensível, a partir do contato pessoal com os mais pobres, aos problemas mais vastos de nosso tempo. O gesto do amor individual, longe de encobrir a realidade, abre o coração e o espírito às dimensões mundiais do sofrimento, às exigências da justiça a aos imperativos da dignidade humana.
A vocação vicentina não é uma incrustação artificial. Plenamente assumida, ela conduz a uma unidade de vida fundamental, pondo em acordo pensamento, palavras e atos.
A harmonia entre fé e as obras ao serviço do próximo, tal é o ideal pacientemente perseguido, apesar de suas fraquezas ou de suas insuficiências, pelos herdeiros espirituais de São Vicente de Paulo e de Antônio Frederico Ozanam.
Longe das luzes da ribalta e dos artifícios mediáticos, mas resolutamente voltada para o futuro, a Sociedade de São Vicente de Paulo, guarda, no mais profundo de si mesma, este pensamento de seu fundador:
“A caridade jamais deve olhar para trás, mas continuamente para a frente, porque o número de seus benefícios passados é sempre muito pequeno e as misérias presentes e futuras, que deve aliviar, são infinitas”.
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